Lei de Execução Fiscal poderá ser reformada para evitar judicialização

O pacote de projetos para a modernização do processo tributário, que começará a tramitar no Senado, inclui uma nova Lei de Execução Fiscal. A ideia é que a Fazenda Pública só possa avançar com as ações de cobrança se, antes, tiver dado a chance de os contribuintes acertarem as suas dívidas por meio de parcelamento ou acordo (transação), oferecerem

garantias antecipadas – para evitar bloqueio e penhora de bens – e apresentarem pedidos de revisão do débito.

Essa medida inverteria a lógica atual. As ações de execução fiscal são tratadas como prioridade para a cobrança da dívida pública e essa situação tem provocado o sufocamento do Judiciário.

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que o ano de 2021 se encerrou com 77 milhões de processos em tramitação – 35% do total eram execuções fiscais, movidas por municípios, Estados e União.

Lei de Execução Fiscal em vigor é a nº 6.830, editada no ano de 1980. “Existe consenso de que é anacrônica. Não está atendendo os interesses da Fazenda, nem dos contribuintes”, diz João Grognet, coordenador-geral de Estratégias de Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e membro da comissão de juristas que elaborou a proposta levada ao Senado.

O Fisco, hoje, aplica um auto de infração e o contribuinte tem o direito de se defender administrativamente. Se nada fizer ou perder a discussão na esfera administrativa, os valores são inscritos em dívida ativa e a Fazenda Pública pode, a partir daquele momento, ajuizar a ação de cobrança.

Pela proposta, haveria um ritual a ser seguido por municípios, Estados e União entre a inscrição do débito em dívida ativa e a ação de cobrança.

Os contribuintes receberiam uma notificação e teriam prazo de dez dias para pagar ou parcelar a dívida e de 20 dias para pedir a revisão do débito ou para apresentar uma garantia antecipada – se a intenção, por exemplo, for discutir a cobrança na Justiça posteriormente.

Esse prazo, se cumprido pelo contribuinte, interrompe imediatamente a cobrança da dívida. Ele não seria mais surpreendido, portanto, por protestos e inscrição da dívida em cadastro de inadimplentes, nem por bloqueio ou penhora de bens e ativos.

O esgotamento do prazo, no entanto, não impediria o contribuinte de, antes da ação de execução, tentar acertar a sua dívida de forma mais amigável ou ofertar uma garantia para, posteriormente, discutir no Judiciário. Mas os meios tradicionais de cobrança só seriam suspensos a partir desse momento, ou seja, entre o fim do prazo e a manifestação, o contribuinte ficaria vulnerável.

Essa possibilidade de antecipar a garantia é importante, segundo advogados que atuam no projeto, porque entre o momento de inscrição do débito em dívida ativa e a execução fiscal, leva tempo – de seis meses a um ano – e, pelo modelo atual, o contribuinte fica sem acesso, nesse período, à certidão fiscal.

A PGFN mudou as regras no ano de 2018, por meio da Portaria nº 33, para permitir a oferta antecipada de garantia. Mas isso não acontece, de forma geral, em Estados e municípios. Os contribuintes precisam entrar com ação judicial para resolver o problema.

Pela proposta que está no Senado, todos os entes teriam que respeitar o novo ritual. Se o contribuinte ficar inerte, não se manifestar de nenhuma forma nesse período, aí sim, a Fazenda Pública teria o direito à cobrança mais rigorosa da dívida: protesto, inscrição em cadastros de inadimplentes e averbação pré-executória (nos órgãos de registro de bens e direitos). Se nenhuma dessas medidas surtir efeito, passaria-se para a execução de fato.

O texto prevê dois tipos de execução fiscal: a tradicional, na Justiça, e a administrativa – uma das grandes novidades da nova lei. Esse novo modelo é direcionado para dívidas de baixo valor: até 60 salários mínimos (R$ 72,7 mil em valores atuais) na União e até 40 salários mínimos (R$ 48,4 mil) em Estados e municípios.

A Fazenda Pública promoveria a localização e faria a constrição do patrimônio por conta própria, sem a necessidade de uma ordem judicial. Se não concordar, o contribuinte apresenta recurso à Justiça e o caso vira uma execução fiscal tradicional.

Essa medida, se colocada em prática, tem potencial para retirar milhares de processos do Judiciário. Um estudo do CNJ, usado como base para a elaboração das propostas de reforma do processo tributário, mostra que só no Tribunal Regional Federal em São Paulo (TRF-3), 70% das execuções fiscais em andamento referem-se a dívidas de até R$ 50 mil.

Mas deve gerar polêmica no meio jurídico. Advogados com acesso à proposta acreditam que a constitucionalidade dessa medida será discutida. “O projeto tem muitos avanços, mas nesse trecho há um problema porque o contribuinte estaria sendo privado de um bem sem o devido processo legal”, afirma Priscila Faricelli, do escritório Demarest.

Ela vê chance de, no dia a dia, o contribuinte ter o bem bloqueado, com risco de ser expropriado em definitivo, e só saber do ocorrido após esgotado o prazo de contestação.

A advogada destaca ainda que quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade da averbação pré-executória (ADI 5932) deixou claro existir diferença entre informar a dívida – nos órgãos de registro – e o bloqueio dos bens. “Partindo desse mesmo raciocínio, há elementos muito fortes para questionar qualquer tipo de constrição extrajudicial”, diz.

Membros da comissão de juristas que elaborou a proposta sustentam, por outro lado, que deve-se analisar a lei como um todo, levando em consideração todas as oportunidades que serão oferecidas aos contribuintes antes da execução fiscal.

Afirmam, além disso, que nos países da OCDE funciona dessa forma e usam como respaldo uma outra decisão do STF (RE 627106). Os ministros permitiram e fixaram tese sobre a execução extrajudicial de dívidas hipotecárias contraídas no regime do sistema financeiro de habitação.

“Buscamos fazer algo equilibrado, dando mais efetividade à execução fiscal, mas ao mesmo tempo mais direitos aos contribuintes”, afirma Aristóteles Câmara, sócio do Serur Advogados e integrante da comissão de juristas.

A execução fiscal tradicional também ficaria mais rigorosa. A proposta estabelece que o bloqueio de bens e ativos do devedor será feito pelo juiz já no momento da intimação. Hoje, ele recebe a execução e cita o contribuinte, que tem 30 dias para apresentar os bens que serão oferecidos em garantia à dívida para poder discutir a cobrança.

A nova lei, por outro lado, apertaria o cerco contra as execuções “infrutíferas”. A Fazenda Pública ficaria impedida de ajuizar ação relacionadas a cobranças que o STF e o Superior Tribunal de Justiça já se posicionaram contra em decisões vinculantes. Possibilitaria, ainda, a dispensa do processo quando a dívida estiver abaixo de um limite mínimo a ser estabelecido e quando não forem localizados bens do devedor.

Fonte: Valor Econômico, 14/09/2022 – valor.globo.com

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